Química

Vidro Inteligente

Dominar a passagem de materiais inorgânicos do estado líquido ao sólido e, por meio dele, controlar a produção de partículas extremamente pequenas, a esse processo os cientistas denominam sol-gel. Graças a ele, pesquisadores do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), do câmpus de Araraquara, vêm desenvolvendo pesquisas que poderão ter aplicações práticas tão diferentes quanto um músculo artificial para implantes ou um vidro capaz de regular a temperatura ambiente em escritórios e fábricas. 

O que se denomina “sol” é explicado pelos cientistas como a dispersão de partículas de ordem nanométrica (algo cujo tamanho equivale a uma medida milhões de vezes menor que um metro) em líquido como a água ou álcool. O “gel”, cujas características podem ser comparadas às da gelatina, é uma rede de macromoléculas que imobiliza o líquido. O processo sol-gel permite aos pesquisadores navegar no mundo invisível a olho nu das partículas e, por meio da manipulação de suas propriedades, chegar a padrões físicos e químicos que possam representar materiais com novas características. 

O método não é exatamente novo. Teve um auge após a Segunda Guerra Mundial, com a sua utilização para a produção de pastilhas nucleares, com o objetivo de se eliminar ao máximo os vazios dentro dos materiais. Mais recentemente, o sol-gel passou a ser usado para recobrir superfícies. A indústria automobilística, por exemplo, desenvolve camadas que aplicadas sobre a pintura sirvam de repelentes naturais à poeira e água, dando então origem ao carro que não molha nem é manchado de pó nas estradas.A partir dessas perspectivas, não há limites para a imaginação acadêmica. Resta avaliar, de tudo o que se descobre, o que pode ser aperfeiçoado para que desperte o interesse da indústria e represente conquistas da sociedade. É o que o grupo de Araraquara discute no momento. 

As proezas, por enquanto, limitam-se às experiências desenvolvidas nos laboratórios do Departamento de Físico-Química, dentro do projeto temático Desenvolvimento de Conhecimento Básico sobre o Processo Sol-Gel Visando à Elaboração de Membranas Cerâmicas e de Camadas Delgadas, que contam com o financiamento da FAPESP de R$ 417 mil por um período de quatro anos. Os resultados, bastante animadores para quem se debruça na tarefa de criar novos materiais, estão confirmados em duas dezenas de trabalhos científicos publicados em revistas especializadas. Os projetos estão na fase de transição entre a universidade e a iniciativa privada.”Estamos aguardando a oportunidade de contar com a participação da iniciativa privada”, afirma o coordenador da pesquisa, professor Celso Valentim Santilli, engenheiro de materiais pesquisador do Departamento de Físico-Química da Unesp. 

O Instituto de Química da Unesp festeja ainda hoje um feito que tem dois anos e que ressoa apenas nos corredores da universidade. Em pesquisa sobre as qualidades de uma gelatina obtida com óxidos de zircônio somados à água, uma aluna de mestrado, Leila Chiavacci, percebeu que a substância, ao ser aquecida, apresentava sinais de enrijecimento e escurecimento. Em outras palavras, ela estava diante do que considera uma importante descoberta científica, a de que o material inorgânico é capaz de sofrer transformações termorreversíveis, ou seja, quando aquecido fica sólido e opaco e, quando submetido a esfriamento, retorna ao estado líquido e transparente. Pelo que se sabia até então, essa propriedade só era obtida em materiais orgânicos. O feito de Leila foi ter descoberto que pode ser obtida em materiais inorgânicos.

Chegou-se, então, a um produto, o primeiro sistema inorgânico de que se tem notícia com tais propriedades, capaz de revolucionar diversos campos da indústria por meio, por exemplo, de um vidro capaz de bloquear luz ou calor. Por isso, foi logo batizado de “vidro inteligente”. Uma das possibilidades é a aplicação do gel entre placas de vidro de janelas em ambientes que haja interesse em controlar automaticamente a temperatura. Assim, com o calor, o gel se transforma e impede que os raios solares penetrem no local. Com a vantagem de que é possível especificar com antecedência o ponto de temperatura em que se deseja que o gel se solidifique e detone a mudança, numa escala vasta que vai dos 10 graus centígrados a 90 graus centígrados. Tudo dependerá da proporção de mistura dos ingredientes que seria colocada entre as placas. “É o efeito termocrômico, em que o vidro fica opaco à medida que a temperatura sobe”, define Santilli. 

O pesquisador explica que o novo material passaria a funcionar como um bloqueador de calor solar, sendo indicado para janelas de locais que não podem sofrer oscilações de temperatura externa, especialmente o calor excessivo, como é o caso das centrais de computação. “É como se fosse um pára-sol”, explica. Nas salas e ambientes fechados, haveria uma poupança substancial de energia, devido ao uso mais racional de aparelhos de ar- condicionado. Leila e os demais pesquisadores envolvidos no projeto da Unesp em Araraquara cuidam agora de aperfeiçoar a técnica, investigando os demais fenômenos químicos envolvidos na termorreversibilidade do gel. O objetivo é viabilizar o seu uso no cotidiano, despertando o interesse de empresas. Ganha força também entre os pesquisadores de Araraquara a idéia de propor o uso do gel na produção de músculos artificiais que seriam utilizados como prótese em implantes delicados, como o do pênis. Por apresentar notáveis características químicas de flexibilidade, uma vez aquecido, o produto “fica rígido, da mesma forma que acontece com a musculatura”, segundo Santilli. A hipótese ainda está longe de ser comprovada na prática, mas é o primeiro passo para que o objetivo seja perseguido e um dia testado em pacientes. 

O processo sol-gel pode ser usado também para aumentar a resistência à corrosão de metais, com o recobrimento de peças por meio de filme. Em trabalho assinado em conjunto por pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (USP) e do Instituto de Química da Unesp de Araraquara, são demonstrados os efeitos em anéis industriais submetidos à névoa salina durante 144 horas, em amostra recoberta e sem o recobrimento. A diferença é notoriamente visível em fotos de tamanho real: a peça sem o recobrimento apresenta-se corroída, enquanto a outra permanece como nova, reluzente. O resultado foi considerado “excelente”. Segundo eles, nos últimos anos o método sol-gel tem sido utilizado para desenvolver uma nova classe de materiais, chamada ormocer. O fator-chave é a incorporação de grupos orgânicos ligados ao esqueleto inorgânico formado por hidrólise e condensação de alcóxidos. Os filmes híbridos sol-gel apresentam maior facilidade para relaxar as tensões durante o tratamento térmico, ao mesmo tempo que o óxido funciona como uma barreira efetiva contra a corrosão.Devido à pequena porosidade dos filmes, a taxa de corrosão do aço inoxidável é reduzida, no mínimo, pela metade. A seguir, o desempenho dos filmes na luta contra a corrosão pode ser melhorada com o preenchimento dos poros com polímeros orgânicos. Com isso, o tempo de vida das peças metálicas pode ser dilatado substancialmente. 

O processo sol-gel levou os pesquisadores de Araraquara também a estudar a técnica de preparação de membranas cerâmicas para ultrafiltração de ar e de água. Por meio das membranas, consegue-se separar os íons de sódio e cálcio com grau de filtração tão aprofundado que consegue eliminar até 90%, em média, desses elementos de uma água salobra, índice considerado bom na maioria dos casos. Em outras palavras, significa tirar o sal da água, o que pode ser um achado para a produção de água potável em regiões com carência de abastecimento, como no caso do Nordeste. Técnicos do governo mantiveram contatos com os pesquisadores da Unesp de Araraquara no sentido de fornecer membranas apropriadas para essa filtração, para uso em aparelhos de dessalinização importados que estão sendo ativados em escala experimental. Tais membranas podem ter aplicações múltiplas. Em ambientes com ultracontrole, como UTIs em hospitais, são apropriadas para as filtração do ar. A ultrafiltração implica separar pequenas moléculas, além das consideradas grandes, como vírus e bactérias. Na indústria da tecelagem, as membranas podem ser utilizadas para tratar a água utilizada na lavagem de tecido, na produção de jeans por exemplo, evitando o seu despejo nas águas industriais que poluem córregos ou o lençol freático. Na indústria de bebidas, as membranas cerâmicas podem contribuir para o processo de purificação, com a retirada de microrganismos sem o choque térmico da pasteurização, cujo contra-indicativo é a eventual alteração de sabor devido à variação brusca de temperatura a que o líquido é submetido, no caso de leite e cervejas. 

Fonte: http://www.fapesp.br/ciencia443.htm 

acesso em abril de 2002
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